“A garantia do direito à vida reclama o concurso da
estatuição penal. Por imperativo abstrato da justiça. Por exigência concreta de
defesa dos homens e da sociedade. ‘Porque a vida, disse-o Rodriguez Devesa, não
é apenas o suporte biológico de uma existência individual, mas o suposto
primeiro de subsistência da espécie humana’”.
Ricardo Henry MARQUES
DIP
“Quais são os critérios para julgar e avaliar a ‘dignidade’
e a ‘aceitabilidade’ de uma vida? A saúde? O bem-estar social ou econômico? A
aceitação pela própria família, pela sociedade ou pelo vivente mesmo? Quem
decidirá a avaliação e a aplicação desses critérios? Quem tem poder para
decidir a vida ou a morte?”.
María del Carmen
Fernández de la CIGOÑA CANTERO
I
“O mundo moderno é prostibular
porque tornou negociáveis certos valores que o mundo antigo e o mundo cristão
consideravam como não negociáveis”, disse
certa feita Charles PÉGUY, célebre escritor e herói francês. Mais recentemente,
Bento XVI, recebendo parlamentares do Partido Popular Europeu, ressaltou de
forma inequívoca que a promoção da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a
proteção da vida da estrutura natural da família, constitui “princípios não
negociáveis”, acrescentando que esses princípios fundamentais, requerem um
consenso geral: “- a proteção da vida em todas as suas fases, do primeiro
momento da concepção até o seu termo natural; - o reconhecimento e a proteção
da estrutura natural da família (união entre um homem e uma mulher, tendo como
base o matrimonio), defendendo-se das tentativas de tornar equivalentes formas
radicalmente diferentes de uniões que na prática contribuem para desestabilizar
a família, obscurecendo a sua insubstituível função social; - a proteção do
direito dos pais a educar os filhos”.
II
Por isso, causam-nos apreensão os maus presságios que pesam sobre a
nação brasileira com a edição do Projeto de Lei de Código Penal (PLS –
Projeto de Lei do Senado n. 236 de 2012), cujo anteprojeto
foi elaborado por uma comissão de juristas presidida pelo ministro do STJ
Gilson Dipp, oriundo do
Requerimento n. 756/2001, apresentado pelo Senador Pedro Taques.
O malsinado PLS, entre outros desvarios que fogem aos limites da
presente declaração, opera uma radical alteração da natureza lesiva do
crime de aborto, uma injustificável diminuição da proteção da vida humana no
crime de infanticídio e despenalização da prática homicida da eutanásia.
No corpo de normas do supradito Projeto de Lei “
o crime de aborto
está praticamente abolido, restando apenas a hipótese de não consentimento da
gestante, efetivamente passível de punição; o crime de homicídio doloso através
da eutanásia livrou-se da sanção penal sob a rubrica antinômica da piedade e o
de infanticídio perdeu sua importância e gravidade ao ponto de se transformar
em uma banalidade, como a simples suspensão do processo”, como assinala o
eminente Procurador de Justiça do Estado de Santa Catarina, Gilberto Callado
OLIVEIRA
.
Como se denota da
leitura do Projeto de Lei referente às matérias acima descritas, os integrantes
da Comissão responsável por sua elaboração olvidaram que a vida humana é um
valor da pessoa, um bem que forma parte necessária de toda pessoa concreta
junto a outros bens. É um valor ou bem igual para toda pessoa, não instrumentalizável
e fundamental.
Com efeito, conforme faz notar
Ramón MACIÁ MANSO, Catedrático de Filosofia do Direito da Universidade de
Oviedo, “
a vida deve ser respeitada e
preservada
porque é um bem necessário sem
o qual deixaria de ser pessoa. Os atos de respeito e de preservação da vida
humana não só são bons
senão também de
necessária posição – ação – no uso racional da liberdade, por isso devem ser
realizados. Os atos de aniquilação e de destruição da vida humana, não só
são maus
senão de necessária omissão, não
podem ser admitidos no uso racional da liberdade, por isso devem ser evitados.
Há atos objetivamente bons e que
devem
realizar-se por sua especial bondade
e atos
objetivamente maus, que devem ser evitados por sua especial maldade
”.
Daí que – insiste o mesmo autor - “não existe nenhuma vontade individual nem coletiva, nem tampouco poder
humano algum capaz de fazer que o ato de matar outra pessoa ou a si mesmo deixe
de ser mal e não deva ser evitado. Tampouco existe poder nem vontade humana
alguma capaz de fazer, por seu simples querer e decisão, que o ato de matar uma
pessoa se transforme de mal em bom e de proibido em preceituado ou simplesmente
permitido. Nem a decisão de uma pessoa nem o acordo de uma assembleia pode,
pelos simples querer individual ou coletivo, anular nem transformar a bondade
ou maldade objetivas dos atos nem, conseguintemente, tampouco, intervir nem
modificar, de modo algum, o sentido do preceito ou proibição”.
A norma moral impõe o dever de
respeitar e preservar a vida humana, toda vida humana sem exceções, desde o seu
início até o seu termo natural. Diz-se amiúde, que o problema de saber qual o
momento exato em que a vida se inicia, e mais concretamente, saber se o
concebido e não nascido tem uma vida nova diferente da mãe e quando está
começa, é um problema que só a ciência corresponde resolver.
Destarte, como acentua agudamente
o jurista lusitano Mário BIGOTTE CHORÃO:
“o
saber científico atesta, segundo opinião amplamente sufragada e muito
autorizada, que, com a fusão dos gametas, se inicia a vida de um novo organismo
biológico, um indivíduo da espécie humana, autônomo e com identidade genética
própria. Essa conclusão não parece prejudicada pela situação desse organismo na
fase anterior à nidação (designada, por vezes, ambiguamente,
‘pré-embrionária’), nem pela hipótese gemelar monozigótica. Por sua vez, a
reflexão apoiada na filosofia da natureza e na metafísica permite considerar –
conforme a melhor doutrina – que o ser humano embrionário é uma pessoa, ou
seja: ‘rationalis naturae individua substantia’ (Boécio); ‘individuum
rationalis naturae’ ou ‘subsistens in natura rationali vel intellectuali’
(Tomás de Aquino); uma unidade substancial corpóreo-espiritual. Em suma, no momento auroral da
fecundação, não é uma coisa, mas alguém – um ser pessoal –, que surge na terra
dos vivos”.
III
O menoscabo dos
membros da Comissão pela vida da pessoa humana, considerada como um
valor
ou
bem fundamental e que deve, portanto, se protegida pela lei positiva,
não decorre ao que nos parece, apenas do desconhecimento da lei natural, senão,
também, de um acentuado laicismo que visa o total rechaço de Deus e de sua
divina lei da coisa pública e, por conseguinte, do direito. “
Das leis, e de
toda a vida oficial, toda inspiração e ideia religiosa é sistematicamente
banida, quando não diretamente atacada”, advertiu com pesar Leão XIII, de venerável memória.
O escárnio para
com o sagrado fica evidente quando se observa na segunda parte do relatório
final do Anteprojeto, que trata dos modos da codificação, a seguinte citação
inicial do vetusto filósofo e jurista sergipano Tobias BARRETO sobre a origem
do direito: “O direito não é filho do céu. É um produto cultural e histórico
da evolução humana”.
Para confrontar o pensamento do incrédulo jurista, que
para nossa tristeza é o pensamento de muitos juristas e políticos de nosso
tempo, pensamento este que subjaz no bojo do Projeto de Código Penal, calha
trazer à colação por sua singular atualidade as palavras do ilustre professor
Frederick Daniel WILHELMSEN, catedrático de Filosofia e Política da
Universidade de Dallas: “
Um direito que
não é estimulado e penetrado, ‘animado’ pelo direito natural, ou é ‘direito morto’
ou é ‘lei bestial’. Este direito bestial se baseia em um humanismo segundo o
qual o homem não depende de Deus, senão da sociedade, sendo puramente membro de
um rebanho. Mas de um tal humanismo para o bestialismo é um passo”.
IV
Recentemente, com pesar foi
noticiado que “o Conselho Federal de
Medina (CFM) decidiu romper o silêncio e defender a liberação do aborto até a
12ª semana de gestação. O colegiado vai enviar à comissão do Senado que cuida
da reforma do Código Penal um documento sugerindo que a interrupção da gravidez
até o terceiro mês seja permitida, a exemplo do que já ocorre nos casos de
risco à saúde da gestante ou quando a gravidez é resultante de estupro”.
(Ligia Fromenti, “CFM vai apoiar o direito de a mulher abortar até a 12ª semana
de gestação”, O Estado de São Paulo, 21/03/2013).
O tema é atual: em 2007, uma
sessão da Anistia Internacional havia
proposto para seu próximo congresso proclamar o aborto como direito humano da
mulher e também propor a reforma do
juramento de Hipocrates, prestado durante séculos e séculos pelos médicos.
(Margherita De Bac, “II
Giuramento di Ippocrate? Vecchio, vieta l’aborto”, Corriere della Sera, Milano,
9/12/2007).
Em sua dissertação nas Primeiras
Jornadas de Deontologia, Direito e Medicina, patrocinado pelo Colégio
Oficial de Médicos de Madri, o veterano e infatigável lutador em prol do
direito à vida, Dr. Antonio de SOROA PÍNEDA, em sua conferência intitulada “Direito à vida na Espanha e países
americanos”, já no longínquo ano de 1976 vaticinava com notória lucidez: “Não estamos diante de um problema
confessional, racial ou médico, senão de um movimento de escala internacional
que, baseado em um tão refinado como miserável materialismo, alcançou
autenticas dimensões de ‘massacre’, pretensamente justificados com a ideia de
uma vida mais tranquila para os sobreviventes. Em tal corrente está se
envolvendo a ciência médica, cujo fim substancial é preservar as vidas
humanas”.
Ao que acrescentava em tom de
denuncia que “na América, poderosos líderes
em negócios macabros, com o instrumento das subvenções, fomentam desde o mais
primário nível escolar a dissociação entre o prazer e a fecundidade, por meio
do contraceptivo, da esterilização, do aborto e até o infanticídio, colaborando
em alguns casos os serviços de Segurança Social e altas organizações
internacionais: a ONU e dependentes dela, como a UNICEF, cujo fim seria, em
tese, proteger a infância”.
Daí que o catedrático de filosofia Rafael GAMBRA CIUDAD, no mesmo evento,
discorrendo sobre o tema “Ética e metafísica”,
com clareza meridiana fez ver que “Somente sobre a base de uma ética metafísica
(e de uma lei natural) poderá
sustentar-se uma deontologia e um código de honra profissionais, por mais que
para os não crentes no Fundamento Ultimo de tal Lei se transmita legendária – e
providencialmente – como o Juramento Hipocrático através de mais de dois
milênios de tradição cultural”.
V
É preciso incluir neste cenário
de horrores o decreto
7037/2009 que aprovou o denominado PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS
HUMANOS-3, assinado pelo então presidente
Luiz Inácio LULA DA SILVA e seus ministros, entre eles, Dilma ROUSSEFF, ao
tempo, chefe da Casa Civil. Sua leitura repulsiva, já que se encontram ali
depravações e felonias de toda espécie, a ponto tal que pode ser considerado
como o
máster plano da ofensiva
contra a vida reta e sã
.
Em uma de suas ações programáticas, revestidas do título de
“direitos das mulheres para o
estabelecimento das condições necessárias para sua plena cidadania”, o
PNDH-3 propõe
“considerar o aborto tema
de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde”. Daí a
ordem programática aos legisladores brasileiros para a descriminalização do
aborto:
“Recomenda-se ao Poder
Legislativo a adequação do Código Penal para a descriminalização do aborto”
(Diretrizes 9 e 10).
Quando se começa a viver como se
Deus não existisse, as más ações, outrora reconhecidas como pecaminosas – isto
é, ofensivas à lei de Deus -, encontram quem as justifique, numa subversão à
ética tradicional e numa visão de mundo em que a atividade humana, deixando de
ser orientada para o divino e o eterno, dirige-se para os bens temporais - o
prazer, o dinheiro, o poder, a utilidade social – como se fossem valores
absolutos.
Nesse caso, conforme acentua o
preclaro e saudoso jurista José Pedro GALVÃO DE SOUSA, não há mais obrigação
moral, e a obrigação jurídica fica
reduzida a uma imposição do poder público. Bem o compreendeu o romancista
russo Dostoievski (1821-1881), ao
dizer, em trecho famoso de sua obra “Os
irmãos Karamazov”, que, se Deus não
existe, tudo é permitido.
Em suma, com a morte de Deus,
para usar a linguagem de hoje, tão cara à ideologia “comuno-ateísta” preconizada e defendida, embora se diga o
contrário, pelos subscritores do PNDH-3 e os membros da Comissão responsável
pela elaboração do Projeto de Código Penal, todos os valores e todas as normas
objetivas desaparecem. Ficamos para além de todos os valores e de toda a norma
objetiva. Os únicos valores e normas possíveis nessa hipótese ateísta são os
valores e normas puramente subjetivos e consequentemente relativos.
VI
Nesse contexto, assiste razão ao professor Francisco
CANALS VIDAL, insigne filósofo e membro da Pontifícia Academia de Santo Tomás
de Aquino de Roma quando afirma que
“nos
encontramos diante de ações políticas em luta contra a ideia de Deus e
trabalhando ativamente na ‘secularização’, no afastamento da vida humana de
toda orientação eterna e transcendente, na educação dos homens para a ‘morte de
Deus’ e autodeterminação de si mesmos”.
Sem embargo, como diz o Professor
Vladimiro Lamsdorff-GALAGANE, catedrático de Filosofia do Direito da
Universidade de Granada,
“a história no
ensina – mas nunca aprendemos suficientemente – que uma sociedade, para
subsistir, necessita de uma mínima moral social. Quiçá se viva mais comodamente
sem ela, mas se vive menos tempo, por isso, há que conservá-la”.
E descriminalizar o aborto nas circunstancias descritas no Art. 28 do Projeto
de Código Penal, eximir de pena a prática homicida da eutanásia e diminuir a
proteção da vida humana no crime de infanticídio, implica descer abaixo do
mínimo tolerável.
Por derradeiro, não nos resta
senão fazer eco ao chamado do ilustre procurador de justiça Gilberto CALLADO DE
OLIVEIRA:
“é preciso, portanto, que os
legisladores brasileiros, que devem pronunciar-se sobre esse projeto de lei,
tenham bem presente que aprova-lo significará subverter não apenas os
princípios cristãos, mas a própria ordem vigente na natureza, expressa nos
princípios da Lei natural”.
Toledo,
15 de abril de 2013.
Djoni
Robison Deneka Henz Jean Bez
Fontana
Presidente da Associação Cristo Rei Vice-presidente
Fernando Rodrigues Batista William
Fiorentin
1°
Secretário
2° Secretário
“Sem o direito natural não há Estado de direito. Pois a submissão do
Estado à ordem jurídica, com a garantia dos direitos humanos, só é
verdadeiramente eficaz reconhecendo-se um critério objetivo de justiça, que
transcende o direito positivo do qual este depende. Ou a razão do direito e da
justiça reside num princípio superior à vontade do legislador e decorrente da
própria natureza, ou a ordem jurídica é simplesmente expressão da força social
dominante”. José Pedro GALVÃO DE SOUSA
*****
Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo;
Acadêmico de honra da Real Academia de Jurisprudência e Legislação de Madri;
titular da cadeira n. 42 da Acadêmica Paulista de Direito: “Uma questão
biojurídica atual: a autorização judicial de aborto eugenésico – alvará para
matar”.
MANSO, Ramón Maciá. “Las degeneraciones del poder
frente ao aborto”, Verbo, Madri, ns. 215-1216, maio-junho de 1983, p. 524.
BIGOTTE CHORÃO, Mário Emílio Forte. “Bioética, pessoa
e direito: para uma recapitulação do estatuto do embrião humano”.
WILHELMSEN, Frederick
Daniel. “El Derecho Natural em el mundo anglo-sajón del siglo XX”, conferência
proferida nas “Primeiras Jornadas Hispânicas de Direito Natural” e inserida nas
Actas (
El Derecho Natural hispánico, pp. 224-225).
Aborto
gratuito, equiparação das uniões homossexuais ao matrimonio, benefícios sociais
para prostitutas, mudança de sexo, identidades de gênero, esterilização,
anticoncepção; ali estão todas as lacras, em um marco promotor de espionagem,
da denuncia e perseguição de todos que se mostrem hostis com estas propostas..
CANALS VIDAL. Francisco. “El ateísmo como soporte
ideológico de la democracia”, Verbo, Madrid, ns. 217-218, julho-agosto-setembro
de 1983, p. 900.
LAMSDORFF-GALAGANE, Vladimiro. “El aborto ante la
filosofia tomista”. Verbo, Madri, ns. 131-132, janeiro-fevereiro de 1975, p.
72.
OLIVEIRA, Gilberto Callado.
Projeto de Código Penal: “Código de morte” prestes a desabar sobre a cabeça dos
brasileiros, São Paulo: IPCO, 2013, p.123.
GALVÃO DE SOUSA, José
Pedro. “Apresentação do temário”, in. Primeiras Jornadas Brasileiras de Direito
Natural: O Estado de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 190, pp. 6-7.