Há no catecismo do Concilio de Trento quatro linhas,
que todos os catecismos clássicos, desde os níveis destinados à primeira
formação das crianças até aqueles destinados à perseverança dos adultos, sempre
mantiveram e repetiram, e que agora, a onda progressista, de autodestruição da
Igreja, quer apagar, raspar, esquecer ou contestar.
São muito simples essas quatro linhas que dominam e
norteiam toda a problemática da relação Igreja-Mundo. Ei-las: “A Igreja
Militante é a Sociedade de todos os fiéis que ainda vivem na terra. Chama-se
militante porque está obrigada a manter uma guerra incessante contra os mais
cruéis inimigos: o mundo, a carne e o Diabo”. Paralelamente a esse ensinamento,
tornou-se clássica a transposição com a qual esses três inimigos da Igreja
devem ser vistos também como inimigos de cada alma, que os deve combater, como
toda a Igreja os combate.
Uma das maiores torpezas difundidas pela torrente
revolucionária que se intitula de progressista foi o desfibramento, a
emasculação pacifista que fez da capitulação Igreja Dialogante. Nós outros,
desde o primeiro sinal de iniciação, aprendemos a pedir a Deus que pelo Sinal
da Santa Cruz nos livre de nossos inimigos, e conseguintemente aprendemos que,
com o Sinal da Cruz, nós nos armamos para o bom combate.
Agora ensina-se que não há mais inimigos, que não há
mais lobos, e que a Igreja praticará o mandamento de amor se deixar seus filhos
serem progressivamente devorados pelo mundo, pela carne e pelo Diabo que deixou
de ser o inimigo do gênero humano. O termo “pastoral” tornou-se sinônimo de
molezas e tolerâncias que roçam pelo obsceno. O “progressista” é antes de tudo
um “entreguista”. E em cada passo de nova capitulação, de novo “diálogo”, ele
se desmancha numa glossolalia destinada aos anais da ONU ou encaminhada ao
Prêmio Nobel da Paz.
Qualquer pessoa de sadio bom senso, ainda que
despreparada para discussões teológicas e metafísicas, sabe que um homem de bem
deve lutar por sua honra, deve defender seus filhos com o sangue, deve lutar
por seu Credo, deve combater e querer morrer por sua Fé. E para bem combater o
bom combate é preciso conhecer seus inimigos. A Igreja ensinou-nos durante
séculos a combater, mas agora, em dez anos, uma torrente revolucionária passou
a ensinar que a virtude máxima consiste na entrega, na fuga, na covardia.
Qualquer progressista, escolhido ao acaso, na legião, é mais bondoso do que
Nosso Senhor Jesus Cristo, que com toda a simplicidade falava em guerra, e que
oportunamente usou o chicote.
Vale a pena desenvolver um pouco as quatro linhas do
tridentino, para melhor conceituarmos as três entidades apontadas como inimigas
da Igreja e da alma.
Comecemos pelo fim. O que é o Diabo?
Nós sabemos que entre os vários níveis de ser que
compõem a Criação, existem os seres espirituais desligados de qualquer matéria
e subsistentes como substâncias espirituais dotadas de inteligência e vontade.
E sabemos também que na origem trágica e explosiva desta “primeira criação”
houve uma Revolução nascida do orgulho das criaturas angélicas tiradas do nada
e capitaneada por Lúcifer, que, precipitado nas trevas tornou-se o principal
inimigo da “segunda criação”, isto é, da restauração de tudo na suprema e
eterna novidade que é o Verbo Encarnado. É esse inimigo que, sob a forma da
serpente, “dialoga” com Eva que se torna intercessora do pecado de Adão. E é
esse mesmo inimigo que tentou seduzir Jesus, nos quarenta dias do deserto.
Quando na Missa recitamos o Credo, e dizemos: “Creio
em um só Deus, Pai Onipotente, Criador do Céu e da Terra, de todos os seres
visíveis e invisíveis”, é nos anjos bons e maus que pensamos e cremos. E é
também nesses portentosos seres invisíveis que pensa São Paulo quando diz aos Efésios:
“E sobretudo fortificai-vos no Senhor, por seu poder soberano”. E daqui em
diante o apóstolo cativo tira suas imagens da figura do soldado romano a que
está preso por uma cadeia: “Revesti-vos da armadura de Deus para que possais
afrontar as ciladas diabólicas: porque não é contra os homens de carne e sangue
que devemos lutar, mas contra os principados e potestades do mundo das trevas,
contra as forças do mal espalhadas nos ares. Tomai pois a armadura de Deus para
que possais resistir nos dias maus e ficar firmes no cumprimento de vosso
dever. Sim. Firmai-vos, com os rins cingidos pela verdade, o peito couraçado
pela justiça e os pés calçados do zelo de anunciar o Evangelho da paz. E
sobretudo agarrai-vos ao escudo da Fé, no qual morrerão e se embotarão todas as
flechas inflamadas do Maligno. Tomai enfim o capacete da salvação e o gládio do
Espírito que é a Palavra de Deus” (Ef. VI, 12).
E agora, o que é o Mundo no sentido em que é
apontado como inimigo da Igreja e da alma?
Mais de um teólogo tem apontado os vários sentidos que tem a palavra
“mundo”. Em primeiro lugar assinalamos o sentido genesíaco, metafísico, que
designa a variedade de seres criados por Deus. Nesse sentido, “mundo” é no seu
ser intrinsecamente bom, absolutamente positivo, e não pode ser visto como
contrário ou como inimigo da Igreja. Mas essa intrínseca bondade do mundo, como
ser ou multidão de seres, não quer dizer que ele tenha a plenitude da bondade
(que só Deus possui) e esteja isento das possibilidades do mal que vem, não da malignidade
das coisas criadas, mas da fragilidade dos seres que não têm a aseidade, ou
plenitude do ser.
Tomemos agora o mundo, e principalmente o mundo dos
homens no estado em que se encontra depois do pecado de Adão e depois da
Encarnação. Este mundo ferido pelo pecado não se propõe aos cristãos como
objeto de inimizade porque é a ele, assim mesmo ferido e manchado, que se
aplica a palavra da Misericórdia de Deus: “Deus tanto amou o mundo que lhe deu
seu Filho único” (Jo. III, 16). E também: “Eu não vim para condenar o mundo,
mas para salvá-lo” (Jo. XII, 47).
Há entretanto já aqui, uma atitude tensa e nova que
caracteriza a fundamental atitude da alma cristã. Em relação a esse mundo, em
si mesmo bom, mas marcado pelo pecado das criaturas, é que Jesus nos diz que
nós estamos no mundo, onde Ele nos escolheu, mas não somos do mundo.
E então, se não somos deste mundo nele estamos como
peregrinos, ou como exilados. E este caráter peregrinal da vida cristã se
estende a toda a Igreja da terra: ela está no mundo, mas não é do mundo. Ou
melhor, não é deste mundo. E aqui chegamos ao dualismo mais contrastante e mais
importante da relação Igreja-mundo, e da significação do termo “mundo”. Mas se
a Igreja não é deste mundo, tem de ter sua existência e sua razão de ser com
base em outro mundo. E é curioso notar que esta revelação, a mais
caracterizadora da transcendência de sua obra, é feita por Nosso Senhor a
Pilatos: “Meu Reino não é deste mundo, se meu Reino fosse deste mundo meus
servidores teriam combatido para impedir que eu fosse entregue aos judeus: mas
o meu Reino não é deste mundo” (Jo. XVIII, 36). Há então na obra de Deus uma
criação de todas as coisas, e uma outra criação, ou uma nova criação na ordem
da Salvação. Desde o Antigo Testamento encontramos o anúncio do outro mundo. Em
Isaías temos: “Não cuideis mais das coisas antigas, eis que vou realizar algo
de novo” (Is. XL, 15-17). Mas é no Novo Testamento que temos a chave do
mistério anunciado pelos profetas: “Quando alguém está em Cristo é uma nova
criatura, e então pode-se dizer: o antigo desapareceu, vede: tudo é novo!” (II
Cor. V, 17).
Não se diga, porém, que o “outro mundo” é apenas a
Igreja do Céu. Não. Já na terra a Igreja é o Reino de Deus começado, é portanto
o “outro mundo” que está neste mundo de modo incoativo e peregrinal, mas não é
deste mundo.
Mas não é ainda nesse sentido de “velho mundo”
que o mundo é inimigo da Igreja. Ao contrário, esse
velho mundo ainda é para o cristão o lugar e a ocasião que se oferece para
completar, em sua peregrinação, e no Corpo Místico de Cristo o que faltou em
sua paixão (Col. I, 24). Nesse sentido, amamos o mundo, obra de Deus, e amamos
reduplicadamente o mundo em que Jesus caminhou e caminha ao nosso lado até o
fim do mundo.
Pode acontecer que por desfalecimento de fé e de
esperança nos apeguemos demais a este mundo e nos esqueçamos da Pátria
verdadeira, mas nesse tropeço não é o mundo o agente agressivo principal, o
inimigo que nos desvia de Deus: é antes a carne ou vontade própria que nesse
ato de ingratidão e soberba segue a própria inspiração ou a inspiração de Satã.
Quando é então que o mundo é inimigo da alma e da
Igreja? É o próprio Senhor Jesus quem nos responderá: “O mundo me odeia porque
Eu testemunho contra ele e suas obras más” (Jo. VII, 7). E logo: “Sereis
odiados por causa de meu nome” (Mat. X, 22). E ainda: “O mundo vos odeia porque
não sois do mundo, como Eu não sou do mundo” (Jo. XVII, 14-16).
E agora se vê que o “mundo” inimigo da Igreja é
aquela parte do mundo dos homens que se polariza, que se organiza como
anti-Igreja, e que odeia os cristãos por causa do nome de Cristo, tentando
agressivamente prendê-los, naturalizá-los neste mundo, para que reneguem Cristo
Jesus e voltem as costas a Deus. E que organizações são estas que o mundo ousa
fazer como uma anti-Igreja, ou como uma Igreja do Demônio? A história nos
proporciona vários exemplos de movimentos, de “correntes históricas” que
tiveram como característica essa agressiva e maléfica intenção organizada de
arrancar as almas do jugo de Deus. Nos últimos séculos temos a Civilização Liberal,
e dentro dela as correntes mais concentradas: o revolucionarismo, a maçonaria,
o socialismo e o comunismo. São essas coisas que tentam a suprema estultice de
eclesializar o mundo e de secularizar a Igreja como desejam os progressistas,
que são hoje o mais virulento “mundo” inimigo da Igreja.
E a carne? No tríptico apontado pelo Catecismo de
Trento, “carne” não tem o sentido de “corpo” ou “natureza animal” do homem, e
muito menos o sentido de sexo. O tridentino inspirou-se na famosa dialética
paulina. Como ensinam Santo Tomás (ST, Ia IIae q. 72, a. 2. ad primum) e Santo
Agostinho (Cidade de Deus, XIV, II e III), o termo carne que São Paulo
contrapõe ao espírito, não designa a substância corpórea, mas o homem todo, ou
melhor, a atitude espiritual do homem todo “que pretende viver segundo seu
próprio alvitre” ou que “pretende ser a sua própria lei!” Esta soberba
pretensão de vivere secundum seipsum vem do amor próprio, ferida do pecado
original.
E é nessa ferida do eu que o homem recebe as
seduções do mundo belo e agradável, ou as seduções mais agressivas e venenosas
das anti-Igrejas, ou do mundo inimigo; e é também essa ferida do amor próprio
que acolhe as seduções do Demônio.
Precisamos mobilizar todos os dons de Deus para
combater os inimigos de Deus, mas podemos dizer que a cada um dos três
corresponde, de modo especial, uma das virtudes teologais. Assim diremos:
Do Demônio nos defenderemos com o escudo da Fé; das
seduções ou agressões do mundo nos defendemos com a santa Esperança voltada
para Deus e para o céu; e das fraquezas e malícias do amor-próprio nos
defenderemos com fortes atos de Caridade firmados em insistentes atos de
humildade.
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